domingo, 26 de outubro de 2014

A ÁGUA É UM BEM PRIMORDIAL PARA A EXISTÊNCIA DOS SERES VIVOS!

SEMINÁRIO INTERNACIONAL "EM DEFESA DO DIREITO Á ÀGUA"

Organizado pela Fundação Nova Cultura da Água em Lisboa, 10 de Janeiro de 2009
Painel III - Gestão privada e gestão pública de sistemas de água e saneamento
Comunicação do STAL

Artigo: ÁGUA, DIREITO HUMANO E SERVIÇO PÚBLICO

Caros Amigos, Convidados, Participantes,
Em primeiro lugar quero em meu nome pessoal e do STAL, agradecer o convite que nos foi dirigido pela Fundação Nova Cultura da Água para participar nesta iniciativa, que reputamos de enorme importância e actualidade.

Desde logo, porque estes são temas que dizendo muito aos trabalhadores dos serviços de água e saneamento, ultrapassam largamente o âmbito profissional, pois também somos utentes.
Depois, porque recaem sobre a água, bem indispensável à vida, fortes e graves ameaças, mormente as que resultam da pressão para a sua privatização.
Finalmente, porque, conhecidas que são as orientações do poder político e as ambições do poder económico, é decisivo mobilizar hoje mais do que nunca, a sociedade portuguesa e unir esforços para a defesa da água como direito humano e serviço público essencial.
Como é sabido, a gestão da água foi durante muitos anos uma responsabilidade exclusiva das autarquias. Este facto que se encontra ligado à democratização do acesso das populações à água e saneamento, alterou-se profundamente nos anos 90, na sequência das alterações legislativas então operadas cuja lógica obedeceu a dois objectivos: retirar aos municípios a competência da captação e tratamento de esgotos, concentrando-a nas sociedades gestoras criadas e controladas em 51% pelo Estado, via Águas de Portugal, e em simultâneo, forçá-los a aderir a esta fórmula, impedindo o seu acesso aos fundos de coesão e abrir aos privados as entidades gestoras dos serviços públicos de água sob a figura da concessão.
A realidade é que com a adesão aos sistemas multimunicipais, os municípios não só abdicaram das suas infra-estruturas como perderam qualquer possibilidade de decidirem sobre a gestão e sobre os preços. E são já hoje vários os exemplos que ilustram como isto resultou em maiores dificuldades para os municípios pois as realidades locais deixam de ter significado perante um modelo que visa principalmente a obtenção de resultados económico-financeiros que atinge igualmente os trabalhadores, como ficou patente pela atitude conivente das Águas de Santo André (grupo Águas de Portugal), com a flagrante violação dos direitos dos trabalhadores pela Sisáqua, concessionária da ETAR de Ribeiro de Moinhos -Sines.
Não deixa de ser sintomático que haja autarcas que afirmem preferir delegar a gestão dos serviços do que sofrer a soberania das Águas de Portugal, embora a emenda seja pior que o soneto, e outros que nos digam directamente que pretendiam manter a gestão mas não conseguem resistir à pressão do governo.

Neste cenário, o actual PEAASAR II vem preconizar alterações profundas na forma de gestão dos sistemas municipais, muitas delas contidas no documento elaborado pelas Águas de Portugal, intitulado, “Parceria para a Organização dos Sistemas Municipais”. De acordo com o mesmo, os municípios terão de abrir mão do abastecimento de água, entregar mais uma vez património por valores muito inferiores aos reais, pactuando ainda na redução de efectivos da sua força laboral ao mesmo tempo que se abre aos principais operadores privados a prestação de serviços de exploração de uma área maioritariamente gerida pelas autarquias portuguesas.

É hoje evidente que a estratégia em curso de centralização dos serviços nas Águas de Portugal, a fusão de empresas multimunicipais (caso das Águas do Ave, Cávado e Minho e Lima), a aplicação dos princípios da recuperação de custos e do utilizador/pagador, visa tornar mais atractiva a sua futura privatização, operação que só não foi ainda iniciada porque não está completa a transferência de propriedade pública para as Águas de Portugal. Contudo isto não impediu o governo de privatizar já a empresa de capitais públicos Aquapor ao consórcio privado DST/ABB, grupo que é sócio da empresa municipal de Braga, a AGERE. E é ilustrativo que um dos responsáveis da ABB tenha declarado a uma revista especializada que “a empresa vale 100 milhões e nós compramos por 63, o que foi um bom negócio”.

Simultaneamente, algumas Câmaras Municipais optaram pela privatização directa, sob a forma de concessão, dos serviços públicos de água, em complemento ou não da adesão às empresas multimunicipais, atingindo gravemente os direitos das populações e dos trabalhadores. Outras têm vindo a criar Empresas Municipais, algumas já parcialmente privatizadas.

E se é certo que a privatização não avançou tanto como desejariam os seus arautos, temos consciência que a combinação da má gestão, o elevado endividamento, as fortes restrições à receita dos municípios, e as chantagens sobre eles exercidas são factores que continuam presentes e que aumentam a probabilidade de privatização.

As concessões municipais (água/saneamento), por prazos que vão desde os 25 aos 50 anos, abrangem hoje 40 municípios. Existem hoje seis empresas municipais mistas (Braga, Faro, Tavira, Covilhã, S. João da Madeira, Santarém – processo em curso). Os principais actores privados são a Aquapor, já privatizada, a Indáqua, a AGS/Somague, e em menor escala a Veolia, antes Génerale des Eaux, e mais recentemente a Aqualia (multinacional espanhola) que ganhou os concursos lançados por Campo Maior e Elvas, neste último caso, num processo muito pouco transparente.

Neste domínio é frequente ouvirmos os proponentes da privatização afirmarem que para o cidadão é indiferente quem lhe presta o serviço. Este argumento precisa de ser desmontado. Desde logo porque uma coisa é o cidadão com direitos, outra bem distinta é o cliente cujo acesso aos serviços depende da sua capacidade económica. Além disso assenta na difusão errada da ideia da superioridade da gestão privada visando alimentar a descrença dos cidadãos em relação à política, ao que é público de modo a legitimar o crescimento dos interesses individuais, de acordo com os quais os homens anseiam muito mais pela sua satisfação enquanto clientes do Estado do que pela fruição da democracia.

É igualmente comum ouvir-se que tal como existe boa e má gestão pública, assim acontece com a gestão privada…a diferença é que enquanto a administração pública tem como fim a ampliação e maximização do bem-estar dos cidadãos e a distribuição equitativa da riqueza social por todos os membros, a empresa privada tem como finalidade última a obtenção do maior lucro possível para os seus accionistas. Além de que, tendo a possibilidade de substituir a má gestão pública, dificilmente podemos escolher a gestão privada.

Tal como a experiência tem demonstrado, atrelar meios privados a fins eminentemente públicos, como é o caso, tem conduzido a aumentos de preços, exclusão dos mais pobres e desfavorecidos, perda de controlo democrático, opacidade, corrupção, redução de direitos de utentes e trabalhadores. Esta é a face mais evidente da visão lucrativa da água. Visão que não se compadece com o facto do ciclo da água funcionar em ritmos incompatíveis com os períodos de curto prazo que caracterizam as estratégias das empresas.

Algumas das consequências da privatização dos serviços de água e saneamento são já visíveis. Dou-vos alguns exemplos:

Em Paços de Ferreira, sob gestão da AGS/Somague

Até há pouco tempo as taxas de ligação à rede oscilavam entre os 2500 e os 3500 euros, facto que originou uma manifestação em frente aos paços do concelho e um abaixo-assinado com mais de 12 mil assinaturas. Perante os protestos das populações, o dinheiro vai ser devolvido. Mas quem vai assumir o pagamento, cujo valor ascende a mais de 2,6 milhões de euros, não vai ser a AGS/Somague que recebeu, mas a Câmara Municipal. (…)”.

Em Matosinhos, sob gestão da Indáqua

“Quatro meses após a privatização, a tabela de preços, que está a ser usada pela Indáqua tem 67 itens, enquanto a dos SMAS tinha apenas 54. O que significa, logo à partida, que a privatização dos SMAS provocou o aparecimento de 13 novas taxas e tarifas, que não existiam, impondo assim pagamentos por serviços”. Em Ourém, sob gestão da Veolia

Verifica-se “a quase inexistência de investimento nos anos de 2005 e 2006”. “No início de 2007 estava por investir o montante de 7,5 milhões de euros”, mas, deste valor, “a concessionária investiu 1,2 milhões de euros”. Em 2008 a empresa deveria investir o valor previsto e não realizado nos anos anteriores”, ou seja, 6,4 milhões de euros. Ainda assim, no plano de 2008, a empresa “propôs investir 5,9 milhões de euros”. Deste valor, apenas foi facturado meio milhão de euros, isto é, 8,5 por cento.

Na Covilhã, com a privatização de 49% da empresa municipal Águas da Covilhã, o sócio privado, a AGS/Somague, apesar de minoritário, fica com a gestão executiva de pelouros administrativo/financeiro e comercial; as decisões sobre os preços da água, investimentos, planos e orçamentos, distribuição de lucros, plano económico-financeiro, passam a ser tomadas por unanimidade, conferindo na prática ao sócio privado um poder de veto; além da verba paga pelos 49%, a AGS faz um empréstimo à empresa municipal que será remunerado com uma margem de lucro de 2% (spread), acrescido da taxa de juro.

E poderia continuar…

No plano dos trabalhadores a situação não é melhor. Esta é uma questão crucial na medida em que o desrespeito pelos seus direitos põe em causa a própria qualidade dos serviços. É bom não esquecer que a larga maioria dos trabalhadores com experiência e qualificação provém dos quadros autárquicos. Esses trabalhadores constituem a mais importante força para assegurar os serviços de água existentes, para garantir a sua melhoria e para enquadrar e formar os que chegam. No entanto, o que constatamos é uma tentativa desenfreada não só para colocar estes trabalhadores à disposição das empresas privadas sem negociação com os seus representantes e sem quaisquer garantias, circunstâncias brutalmente agravadas pela dita “reforma da administração pública”, para a redução de direitos e para a sua substituição progressiva por outros trabalhadores, a maioria contratados de forma precária, muitas vezes como forma de ajustar para pior as condições de trabalho, quebrando equilíbrios internos.

A isto podemos somar o aumento do volume e ritmo de trabalho; a individualização de contratos; a promoção da auto-responsabilização como forma de assegurar a exploração de quadros técnicos, a implantação de uma cultura comercial entre os trabalhadores e as dificuldades colocadas às estruturas representativas de trabalhadores, à contratação e negociação colectiva. Veja-se como exemplo a privatização dos serviços municipalizados de Mafra ocorrida em 1994, onde, e respondendo à demagogia da Génerale des Eaux de que pretendia garantir os direitos dos trabalhadores, só agora, 14 anos depois, e por pressão do sindicato, é que estamos a iniciar a negociação. Assim, a ideia propalada de que os trabalhadores nada têm a temer com a privatização dos serviços não apenas soa como é falsa, sabendo-se como se sabe, que o custo mais baixo da mão-de obra constitui uma boa parte da vantagem de custo dos concessionários.

Dito isto, a questão central é a de saber se a água deve ser gerida como um serviço público próximo das populações e controlado por eleitos locais ou enveredar por um modelo controlado por gestores nomeados pelo governo de turno, distante das realidades locais e onde as questões ambientais e sociais seriam secundarizadas face ao objectivo supremo do lucro.

A nossa opção é clara. A água é um bem essencial à vida, deve continuar a ser uma responsabilidade das autarquias, tal como a propriedade e a gestão dos serviços devem permanecer sob controlo público. E sem ignorar que há autarquias que não investem, algumas para melhor poderem justificar a privatização, e outras onde os serviços funcionam mal e de forma deficiente, reafirmamos que a privatização não é solução, é parte do problema, e é incompatível com a obrigação do Estado de assegurar o direito de todos à água, direito que é indissociável da construção de serviços públicos de qualidade, democráticos, sustentáveis e ao serviço do país.

Estes são princípios sobre os quais temos baseado a nossa luta contra a privatização e enquadram a nossa participação no âmbito da Campanha Nacional “Água é de Todos, não o negócio de alguns”, que vos convidamos a conhecer, movimento que reúne actualmente mais de 50 organizações, envolvendo comissões de utentes, autarquias locais, sindicatos, colectividades, etc., e temos em curso um abaixoassinado que conta já com 30 mil assinaturas que pretendemos entregar no próximo mês de Março em torno do Dia Mundial da Água.

Tendo em conta que este é um ano eleitoral, envolvendo os três níveis de poder: local, central e europeu, pensamos que é decisivo colocar este tema na agenda política, responsabilizar o poder político pelas acções e omissões e exigir compromissos futuros assegurando o direito à água para todos e a natureza pública dos serviços. As conquistas em outros países demonstram que é possível derrotar a privatização e desenhar outros caminhos. É nesse sentido que aqui manifestamos a nossa disponibilidade para trabalhar com todos os que no nosso país lutam contra a privatização deste serviço público essencial.

Obrigado

STAL - Francisco Braz

Sem comentários:

Enviar um comentário